Denis
HUISMAN
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Esta obra é uma reflexão sobre a origem das ideias e dos conhecimentos
humanos, ao mesmo tempo que sobre os fundamentos metafísicos da racionalidade.
A unidade destas duas problemáticas é necessariamente contraditória na
perspectiva do empirismo que Locke inaugura, e de que este ensaio é um marco miliário. Além disso, a
parada das interrogações lockianas ultrapassa a dimensão metafísica ou gnosiológica: a moral, a religião, a teologia, encontram-se igualmente renovadas.
O empirismo de Locke começa por uma crítica da teoria das ideias inatas,
aquela que o cartesianismo tinha formulado levando-a sem dificuldade a um grau
de perfeição dificilmente ultrapassável (livro l). Locke pretende mostrar que o
pôr em causa o inatismo não arruina de modo nenhum o valor objectivo das ideias
(particularmente no domínio moral). Não existem ideias inatas no espírito
humano, é a famosa "tabula rasa".
O livro II expõe a génese das ideias complexas a partir das ideias
simples. Estas podem ter por origem a sensação (é o caso das qualidades
sensíveis ou do espaço), a reflexão, ou a intervenção combinada de ambas. No
exame do valor objectivo dessas ideias, Locke distingue as qualidades primeiras (que
pertencem realmente aos corpos) das qualidades segundas (que
apenas existem no sujeito que percebe).
Passivo na recepção das ideias simples, o espírito é activo na formação
das ideias complexas. Essa formação pode realizar-se segundo três modalidades
de associação: combinação, junção, abstracção. Daí resultam três espécies de
ideias complexas: modos, relações e substâncias.
Conhecer é, então, aperceber entre as ideias relações de conveniência ou
de não conveniência. Locke analisa as possíveis combinações das diversas
relações, assim como os diversos graus de conhecimento que daí decorrem. Por
exemplo, as ideias matemáticas ou morais, não remetem para nada diferente delas
próprias, não têm que se conformar com uma realidade exterior; o conhecimento
adquire, então, a sua certeza da evidência intuitiva ou da demonstração. Quanto
aos conhecimentos que remetem para realidades fora de nós, só a experiência
pode assegurar-nos da sua objectividade.
A reflexão lockiana sobre a génese das nossas ideias e dos nossos
conhecimentos desemboca no exame das funções da linguagem (livro III) e sobre o
estudo crítico dos poderes do entendimento humano (livro IV). Nenhum
conhecimento legítimo lhe é permitido em certos domínios: a infinidade, a
eternidade e, por consequência, a divindade. A teologia é, pois, desqualificada
e também a metafísica visto que o nosso entendimento não tem qualquer acesso à
essência real das coisas. Não nos é permitido afirmar, por exemplo, que a
substância espiritual é distinta da matéria; Deus tinha podido muito bem dar a
esta a faculdade de sentir e de pensar.
A influência do Ensaio sobre o Entendimento Humano foi
imensa. Não poderíamos sublinhar o suficiente a importância que este livro teve
para o Século das Luzes, que fez dele o paralelo filosófico da obra científica
de Newton. Traduzido desde 1700 por Pierre Coste, exerceu, em França, em
Voltaire e nos enciclopedistas uma influência profunda e durável. Viu-se em
Locke aquele que restabelecia os direitos da análise e da observação, após um
século de domínio do espírito de sistema (o dos grandes metafísicos do século
XVII: Descartes, Malebranche, Espinosa, Leibniz, que, no entanto,
influenciaram, eles próprios, as Luzes). Nos Novos Ensaios sobre o
Entendimento Humano, Leibniz criticava vivamente o empirismo lockiano. À
ideia de «tábua rasa», opunha a fórmula: «Não existe nada no entendimento que
precede os sentidos, a não ser o próprio entendimento.» Mas a morte de Locke
dissuadiu Leibniz de publicar os Novos Ensaios.
Edição portuguesa Ensaio sobre o Entendimento Humano (2 vol.), Fundação
Calouste Gulbenkian, 1999
Estudo J. Bennet, Locke, Berkeley, Hume, central Themes, Oxford, 1971.
Estudo J. Bennet, Locke, Berkeley, Hume, central Themes, Oxford, 1971.
©Fev/2002.
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